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Ceres Canali

EFEITO LÚCIFER

Partiremos inicialmente, da compreensão Bíblica de quem era Lúcifer; posteriormente, do uso desta metáfora religiosa no que tange à Criminologia e seus impactos sobre o trabalho do Psicólogo Criminal.



Lúcifer significa "estrela da manhã", "filho da alva" ou "o que brilha", "o que traz luz". Tradicionalmente é um dos nomes atribuídos ao diabo, também conhecido na Bíblia Cristã como Satanás. A palavra Lúcifer foi usada na versão em Latim da Bíblia, a Vulgata, para traduzir a palavra hebraica heylel.[1]


Sinteticamente, os escritos Bíblicos contam-nos que Lúcifer era o dileto de Deus e seu pecado foi ter deixado sua beleza e sua alta posição na hierarquia celeste, torná-lo soberbo. Orgulhoso, ele decidiu que queria construir seu trono acima de Deus. E convenceu cerca de um terço dos anjos a apoiá-lo. A tradição diz que, para enfrentar a batalha pelo paraíso, Lúcifer transformou-se num terrível dragão.


O exército dos rebeldes não foi suficiente para vencer as hostes celestiais. Os perdedores foram enviados para o inferno, daí o termo “anjos caídos”. Lá, deveriam arder no fogo por toda a eternidade. Lúcifer então, pagou um preço maior; foi transformado no horrendo Satanás, ou Satã.[2]



A idéia de que um abismo intransponível separa pessoas boas de pessoas más é consoladora por pelo menos duas razões. Antes de tudo, cria uma lógica binária, na qual o mal é essencial. Muitos de nós percebemos o mal como uma entidade, uma qualidade intrínseca de certas pessoas e não de outras. No final, uma semente ruim produz frutos ruins, como mostra seu destino ... Além disso, argumentar que existe uma dicotomia do Bem/Mal absolve as "pessoas boas" da responsabilidade. Isso, os libera de terem que considerar até seu possível papel na criação, defesa, perpetuação ou admissão das condições que contribuem para o crime, vandalismo, assédio, intimidação, estupro, tortura, terror e violência. "É assim que o mundo passa, você não pode fazer muito em troca, e eu certamente não posso fazer isso", uma visão pouco comprometida.


Como resultado dessa conveniente esquematização que nos torna inocentes a um bom preço, nós, que nos consideramos "bons", excluímos a possibilidade de nos transformarmos em pouco tempo, em executores cruéis, atores em primeira pessoa daquelas atrocidades que nos horrorizam quando as lemos ou as vemos.


Todos podemos nos transformar de Lúcifer em Satanás, não por predisposição interna, como a psicologia acredita ao distinguir o normal do patológico; como a religião quando distingue o bem do mal; mas por dois outros fatores que são o "sistema de pertencimento" e a "situação estressora" em que nos encontramos.


Temos então duas vertentes; por um lado, a crença de que os comportamentos são sempre o resultado das disposições internas das pessoas (locus interno) está enraizada, enquanto que, o peso das situações nas quais elas se encontram, na determinação de seus comportamentos, é subestimado, especialmente nas sociedades individualistas como a nossa.


Sob outro viés, vemos o crescimento da criminalidade como resultado de uma filosofia social errada, que de maneira utópica, considera o homem um produto de seu ambiente, enquanto a transgressão é sempre vista como uma conseqüência de condições socioeconômicas desfavorecidas. Essa visão prega que onde um crime ocorre, a sociedade é responsável, não o indivíduo. Assim, algumas verdades indiscutíveis, são postas em cheque, tais como: o bem e o mal existem, os indivíduos são responsáveis ​​por suas ações, o mal é frequentemente o resultado de uma escolha, e a penalidade deve ser certa e imediata para aqueles que fazem o seu caminho em detrimento dos inocentes.


A tese apoiada por Zimbardo, faz-nos considerar que a situação social em que o indivíduo está inserido, se torna decisiva e que pode levar um indivíduo a agir de uma maneira, absurdamente diferente, dos seus valores e comportamentos habituais.


O problema quel Zimbardo explicitou com sua tese, pode ser resumido na pergunta: Como é possível que uma pessoa habitualmente correta se comporte cruelmente em determinadas circunstâncias? A essa pergunta, Zimbardo respondeu que "o mal é o exercício do poder sobre os outros em uma situação em que o indivíduo não se sente responsável por suas ações". O poder é a palavra-chave, como diz no seu vídeo.


Zimbardo argumentou que a transformação que ocorre em um indivíduo e o leva a cometer ações monstruosas é o resultado do que ele chama de Efeito Lúcifer, o resultado da interação entre fatores disposicionais (conformismo e espírito crítico fraco), situacionais e sistêmicos (o sistema social influencia as duas variáveis ​​anteriores e define as regras implícitas ou explícitas que prescrevem como agir, fornecendo os papéis que os indivíduos devem seguir, apoiando-as e legitimando-as do ponto de vista dos recursos, da ideologia das regras de ação etc.). Estes três fatores é que devem ser analisados. Ainda nos diz Zimbardo, o Efeito Lúcifer começa em um sistema político-econômico altamente ideológico, burocratizado e governado por um rigoroso sistema hierárquico e funcional, resultando em situações que agem como um barril (recipiente maligno) no qual os indivíduos se transformam em "maçãs podres", adotando um comportamento hediondo, diferente do usual. A dinâmica é a seguinte:


1. Desindividuação (ou anonimização): o comportamento do indivíduo não é mais uma expressão de sua personalidade, mas de fazer parte de um grupo. A pessoa nessa condição não se sente mais responsável por suas ações, pois sua conduta é ditada pelas regras da situação específica em que atua e não pelas próprias regras internas.


2. Desumanização (ou desprecificação): o indivíduo pertencente a um grupo externo é relegado a uma esfera sub-humana, que é reduzida à classificação do objeto ou a ser mais baixa. Desse modo, o vínculo de empatia com o outro se perde e o sentimento de culpa também é desfeito. Isso facilita a execução de atos de violência contra a "vítima".


3. Conformismo: tendência, pela necessidade de aprovação, de alinhar completamente o comportamento de alguém com o da maioria, mesmo quando este é caracterizado por uma conduta repreensível com base nos mesmos parâmetros do sujeito que se adapta a ele.


4. Heterodirecionamento: afrouxamento ou remoção da responsabilidade individual obtida na medida em que o indivíduo interpreta seu comportamento não como seu, mas como dirigido pelas regras externas impostas pela situação e/ou pela estrutura ou função hierárquica na qual ele se encontra inserido.


5. Obediência: propensão a se submeter a ordens, mesmo imorais, de figuras institucionais com autoridade ou alto status em um dado contexto hierárquico e/ou funcional.


6. Difusão de responsabilidade: a perda do dever de intervir em caso de emergência, onde estão presentes outros socorristas em potencial, com quem, de fato, a responsabilidade é compartilhada e que leva à inação ou indiferença.


O Experimento, apesar de cruel com os jovens candidatos, trouxe-nos um aprendizado gigantesco nesta dinâmica do poder institucionalizado, exercido sob os demais, nas hierarquias sociais.


O processo de desindividuação induz a uma perda de responsabilidade pessoal, ou seja, a consideração reduzida das conseqüências de suas ações, e isto enfraquece, sobremaneira, os controles com base na culpa, vergonha, medo e a expressão destrutiva, agressiva. A desindividuação, portanto, implica uma diminuição da autoconsciência e uma maior identificação e sensibilidade aos objetivos e ações empreendidas pelo grupo: em outras palavras, o indivíduo pensa que suas ações fazem parte daquelas executadas pelo grupo.


Na opinião de Philip Zimbardo, a prisão falsa, na experiência psicológica vivida pelos sujeitos de ambos os grupos, havia se tornado uma prisão real. Assumir uma função de controle sobre outras pessoas dentro de uma instituição como a prisão, ou seja, assumir um papel institucional, leva a tomar as normas e regras da instituição como o único valor ao qual o comportamento deve se adaptar, ou seja, induz essa "redefinição" da situação ”também usado por Stanley Milgram para explicar as conseqüências do estado heteronômico (ausência de autonomia comportamental) no funcionamento psicológico das pessoas.


Concluindo, podemos dizer que o experimento de Zimbardo, de uma forma inesperada, cruel e brilhante destacou o peso do sistema na determinação do Efeito Lúcifer. A condição de normalização da violência e a desumanização do outro e de si mesmo, são os resultados das situações, são estas que criam as maçãs podres e não o contrário. As situações são produzidas no contexto e são sistemas ruins que criam situações ruins; portanto, comportamentos ruins não são o resultado de um comportamento ruim da maçã podre; os sistemas fornecem apoio institucional, autoridade e recursos que permitem que as situações ruins aconteçam. No experimento, a causa dos comportamentos agressivos e violentos dos indivíduos são, portanto, encontradas nas "variáveis ​​situacionais" e não na vontade de cometer atos cruéis, daquelas pessoas.


Evidenciamos assim, que o entendimento da dinâmica do Efeito Lúcifer é fundamental para o trabalho do Psicólogo Criminal nas suas análises do comportamento. Não podemos incorrer no erro, citado anteriormente, de imputar tudo ao sujeito sem sequer, contextualizar o que lhe passa no entorno. Estas duas visões unilaterais, onde o problema é a maçã podre ou o problema é da sociedade; não contemplam a reflexão que o psicólogo deve sempre estar apto a fazer.




BIBLIOGRAFIA



KELLY ANSGAR, H. SATÃ – Uma Biografia. Globo Ed. Rio de Janeiro.


TED TALK, Philip Zimbardo, acesso: https://youtu.be/RX45lSLe_VE



TOBLER, G.C. O Efeito Lúcifer: como pessoas boas se tornam más. Empório do Direito.com.br acesso: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-efeito-lucifer-como-pessoas-boas-se-tornam-mas


[1] Dicionário de Nomes Próprios [2] Satã – Uma Biografia, de Henry Ansgar Kelly, p.12-14.




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